Assinala-se
este mês mais um ano da navegabilidade do Douro. Foi em finais de outubro de
1990, que uma embarcação turística, com 170 pessoas a bordo, subiu pela
primeira vez o rio, desde o Porto até a Barca D'Alva. De então para cá,
revolucionou-se o turismo de uma região e de um país. Centenas de milhares de
turistas de todo o mundo, cruzeiros de luxo, milhões e milhões de euros… fluem
anualmente pelas águas do Douro.
Mas
será que todos os que hoje usufruem deste filão milionário saberão que a luta
para tornar o Douro navegável em toda a extensão (210 quilómetros) foi dura e
longa? Uma luta de David contra Golias (o Douro contra Lisboa) que começou em
1965? De início, procurava-se escoar pela via fluvial os produtos do Cachão, o
ferro de Moncorvo e outras riquezas naturais, num tempo em que a instalação da
indústria siderúrgica e a extração mineira (volframite, hematite, cassiterite,
cromite, arsénio, manganez, antimónio, ouro, prata…), abriam horizontes novos à
economia da região.
A
navegabilidade impunha-se, pois, como solução. Contudo, o Douro continuava o
rio de mau navegar. A memória dos naufrágios e lutos nas povoações ribeirinhas
e as ermidas nas margens a recordar as tragédias dos velhinhos rabelos,
continuavam a lembrar os perigos seculares do rio. A remoção de obstáculos à
passagem de embarcações de grande porte, assim como a construção de eclusas nas
barragens, eram investimentos necessários, aos quais Lisboa virava costas. Lisboa
era a capital, o resto paisagem. A luta iria, pois, ser longa e difícil. Faltavam
“guerreiros” que afrontassem o regime. Afrontou-o um velho jornalista, Rogério
Reis, hoje votado ao mais injusto silêncio. Alimentou durante anos uma campanha
ininterrupta em prol da navegabilidade, escreveu um livro sobre o tema, fez
centenas de reportagens e editoriais, conferências e ousadas interpelações a
governantes (ainda o conheci nessa luta) antes e depois do 25 de abril. A
batalha foi ganha, está bem de ver. Mas já não para os grandes objetivos
originais (esses perderam-se), e sim para abrir passagem aos luxuosos
cruzeiros.
Rogério
Reis morreu invisual, num bairro social de Vila Real sem nunca ter entrado num
desses cruzeiros que hoje drenam milhões Douro acima e Douro abaixo. Será que
alguma vez, ao celebrar-se mais um aniversário da navegabilidade, se lembrarão
dele, evocando a sua memória? Uma geração que se habitua a apagar a memória,
ainda que hoje lhe corram os milhões pelas mãos, um dia acabará oca, ou, pior
ainda, seca como palhas alhas.
AP
in JORNAL DE NOTÍCIAS, 27-10-2017