Ao teorizar sobre o
inconsciente, há quase um século atrás, Sigmund Freud revolucionou a
psicanálise conseguindo interpretar o lado mais irracional e profundo da
natureza humana como esse lado oculto que afeta os comportamentos que o
indivíduo geralmente recusa aceitar numa dimensão consciente. Se nos transportarmos
para o tempo em que assim teorizou, fácil é perceber como já então se
profetizava o triunfo de algumas das irracionalidades da primeira metade do
século XX, a começar pelo nazismo. Indivíduos que conscientemente não são
racistas nem xenófobos, inconscientemente são-no.
Abre-se, pois, nesta
dualidade (consciente vs. inconsciente), um caminho fácil ao triunfo dos
contrários. E essa exploração dos contrários (que já outros psicanalistas, como
Carl Jung, avaliaram num confronto de opostos que procura sublimar a identidade
do “eu” num cenário de menosprezo e humilhação do “outro”) continua sendo,
ainda hoje, uma estratégia recorrente para atingir e despertar públicos habitualmente
indiferentes ou apáticos, e assim confirmar a eficácia desse tal modelo
hipodérmico de comunicação preceituado por Lasswell.
Esta constatação não
deixa de colocar-nos também perante uma clara problematização de tudo aquilo
que se inscreve nos padrões da norma, do convencional, dos valores morais consolidados,
em favor de um oculto-subversivo, misterioso, marginal, grotesco até. Ou seja,
a sociedade é impelida a admitir uma clara hegemonização de “mitos triviais”, supérfluos,
provocadores, o que, inevitavelmente, irá impor também uma revisão do próprio
conceito de “herói”.
Na verdade, o herói
começa hoje a “medir-se” mais pela capacidade de contrariar o convencional (por
exemplo, assumindo a ousadia de um coito em direto na tv…), do que pela
capacidade de distinguir-se no quadro daquilo que é convencional. Hoje é mais
estimulante assaltar o castelo do que defendê-lo. E esta constatação, se, por
um lado, traduz uma rotura com valores do passado (em que os heróis eram
aplaudidos pela forma como o defendiam), por outro, não deixará de implicar o
risco de estarmos a construir modelos éticos duvidosos e problemáticos para as
novas gerações.
Ocorre-me esta breve
reflexão apenas e só por ter visto quase 70% da população avaliada em recentes
sondagens, aderir positivamente aos discursos racistas e xenófobos de um
conhecido candidato às próximas eleições autárquicas.
AP
in Jornal de Notícias, de 11-9-2017