O Inferno, por via dos
catecismos e a complacência das velhas e engenhosas pedagogias, foi construído
na mente de cada um de nós como esse tenebroso caldeirão cremador que nos
esperará no “além”, caso os nossos passos, por cá, sigam arredios das
convenções divinas. Desse jeito, numa permanente inquietação perante o mistério
da morte, tudo seria visto mais ou menos assim: a alma dos que morrem arredios
dessas “convenções”, terá, na melhor das hipóteses, um lugar no Purgatório
(lugar transitório a que escapará após um período de purgação das suas faltas e
com o contributo dos apelos e esmolas de quem por ela interceda do lado de
cá…), e, na pior, terá à espera esse tal caldeirão de onde não haverá retorno.
E com ele, a garantir o castigo implacável, lá estará, vigilante, o capitão das
trevas, corpo peludo, cornos de chibo, rabo longo e retorcido e garras nas mãos
e pés, que o povo, para evitar nomear (porque dar nome é dominar, é conferir
estatuto íntimo, especial – dizem os filósofos), persiste em chamar de belbezu, chifrudo,
demonho, dianho, diabelho, galhudo, rabudo, mafarrico, lusbel, lúcifer,
anjo-papudo, inemigo, facanito, plascas, zarapelho, satanás, tição-negro,
tardo, mefistófeles... por aí adiante.
Mas
não estavam desacompanhados os catecismos nessa audaciosa missão de expor o
Inferno. A Irmã Lúcia, vidente de Fátima, garantiu tê-lo visto, e descreveu-o
em retrato exaustivo como sendo um “mar de fogo”, com “os demónios e as almas,
como se fossem brasas transparentes e negras, com forma humana (…), entre gritos
e gemidos de dor e desespero”. Enfim, uma visão, mais diabo, menos diabo, já
imaginada por Dante Aliglieri na Divina Comédia e bem retratada na expressão: “Ó,
vós que entrais, abandonai toda a esperança!”.
Tal como Dante nas
palavras e outros nas telas, também na arte medieval os quadros do Inferno retratam
a visão da terra sobre o aspeto da sua transformação nesse terrível caldeirão, deixando
sempre claro como os condenados são maltratados pelos diabos, mas os diabos não
são maltratados por ninguém. Assim como hoje, políticos corruptos sempre impunes
e criminosos anónimos que incendeiam e destroem a Natureza desencantados com a
vida (se a ela não é bela para mim, por que há de ser bela para os outros?,
dirão), donos e senhores de um inframundo que manipulam à sua medida. No ar
flutua uma náusea de fatalidade e uma ideia ambígua da justiça enquanto
sustentáculo da esperança.
E não há
Inferno pior do que uma realidade que nos conduz, tal como sugerem as palavras
de Dante, ao abandono de toda a esperança.
(AP)
in JORNAL DE NOTÍCIAS, 25-8-2017