Do Brasil chegam-me
notícias de que o Governo vai retirar das escolas 98 mil exemplares de um livro
adotado pelo PNAIC (o equivalente ao PNL em Portugal), cujo título é “Enquanto
o sono não vem”, perante a queixa generalizada de que uma das narrações sugere
um casamento entre pai e filha, portanto uma situação de incesto. Percebi, ao
passar os olhos pela narrativa, que se trata de um texto da tradição oral,
embora me pareça demasiado “moldado” pelas sucessivas vozes de narradores por
que passou.
De todo o modo, há no
aproveitamento desta narração para o universo infantil um grande equívoco. Os contos
populares (e muitos deles foram importados de Portugal…) ao abordarem temas
como o incesto, pedofilia, racismo, etc., fazem-no em termos simbólicos. E se a
interpretação da simbologia não chega até às crianças, há que prescindir deles
na literatura infantil.
Por exemplo, o conto “Pele
de Burro” de que se conhecem muitas variantes (eu próprio recolhi duas), e
integrado no ciclo da “Gata Borralheira”, trata de um rei que tenta casar com a
filha, ou porque prometeu à rainha moribunda só vir a desposar uma mulher mais
bela que ela, ou com uma a quem servisse o seu anel, ou a quem servissem os
mesmos vestidos, etc., etc. Ora, como só a filha do rei preenche tais condições,
o casamento seria com ela. Porém, aqui entra uma fada que oferece à menina a “pele
de burro” que a disfarça levando à sua rejeição pelo pai, mas não por um
príncipe que a desposa. A simbologia da mensagem deste conto é clara: a proibição
do incesto. Mesmo que as condições naturais o favoreçam (promiscuidade
habitacional, ambiente miserável nas famílias…), há que combatê-lo com todas as
forças. Passar da natureza à cultura, da vida animal à vida humana, é um dos mais
valiosos requisitos civilizacionais.
São estas mensagens que
os contos populares transmitem. Passar os seus conteúdos para a literatura
infantil é um desafio sério. Quem não o pode, ou não sabe fazer… fique quieto.
(ap)