quinta-feira, 22 de junho de 2017

A propósito de uma grande polémica por causa de um livro infantil no Brasil


Do Brasil chegam-me notícias de que o Governo vai retirar das escolas 98 mil exemplares de um livro adotado pelo PNAIC (o equivalente ao PNL em Portugal), cujo título é “Enquanto o sono não vem”, perante a queixa generalizada de que uma das narrações sugere um casamento entre pai e filha, portanto uma situação de incesto. Percebi, ao passar os olhos pela narrativa, que se trata de um texto da tradição oral, embora me pareça demasiado “moldado” pelas sucessivas vozes de narradores por que passou.

De todo o modo, há no aproveitamento desta narração para o universo infantil um grande equívoco. Os contos populares (e muitos deles foram importados de Portugal…) ao abordarem temas como o incesto, pedofilia, racismo, etc., fazem-no em termos simbólicos. E se a interpretação da simbologia não chega até às crianças, há que prescindir deles na literatura infantil.

Por exemplo, o conto “Pele de Burro” de que se conhecem muitas variantes (eu próprio recolhi duas), e integrado no ciclo da “Gata Borralheira”, trata de um rei que tenta casar com a filha, ou porque prometeu à rainha moribunda só vir a desposar uma mulher mais bela que ela, ou com uma a quem servisse o seu anel, ou a quem servissem os mesmos vestidos, etc., etc. Ora, como só a filha do rei preenche tais condições, o casamento seria com ela. Porém, aqui entra uma fada que oferece à menina a “pele de burro” que a disfarça levando à sua rejeição pelo pai, mas não por um príncipe que a desposa. A simbologia da mensagem deste conto é clara: a proibição do incesto. Mesmo que as condições naturais o favoreçam (promiscuidade habitacional, ambiente miserável nas famílias…), há que combatê-lo com todas as forças. Passar da natureza à cultura, da vida animal à vida humana, é um dos mais valiosos requisitos civilizacionais.

São estas mensagens que os contos populares transmitem. Passar os seus conteúdos para a literatura infantil é um desafio sério. Quem não o pode, ou não sabe fazer… fique quieto. 

(ap)