Rezam as crónicas que,
sete anos antes da aparição em Fátima, a Virgem apareceu a uma pastorinha no
lugar do Picão, Miranda do Douro, onde chegou a nascer um santuário entretanto
abandonado pela primazia dada pela Igreja ao fenómeno de Fátima. Contudo o lendário
português está repleto de aparições semelhantes, e com tal energia creencial que
levou à construção de importantes capelas e igrejas. Apareceu a uma pastorinha
entre Misquel e Parambos, em Carrazeda de Ansiães, sentada numa cadeira de pedra pedindo
uma capela. Com idêntico pedido apareceu a uma pastorinha muda, que conseguiu
falar, no lugar da Ortiga, junto a Fátima; a uma outra em Colares (Sª da
Peninha); e também a pastorinhos em Alcobaça (Sª da Luz), em S. Vicente da Beira
(Sª da Orada), em Sabrosa (Sª da Saúde), nos Açores (Sª do Pranto e Sª da
Glória), em Arcos de Valdevez (Sª da Peneda), em Cercal do Alentejo (Sª da
Conceição), em Rebordelo de Vinhais (Sª da Penha), em Mora (Sª das Brotas), em
Polima de S. Domingos de Rana (Sª da Conceição), em Óbidos (Sª de Aboboriz), em
Arruda dos Vinhos (Sª da Ajuda), em Pereiros de Vinhais (Sª dos Remédios). Mas
também a um almocreve desorientado na escuridão em Paredes, Sabrosa (Sª das
Candeias); a uma pobre mulher vítima de violência doméstica em Rossas de
Bragança (Sª do Pereiro); a uma menina cega que passou a ver em Vouzela (Sª dos
Milagres); a uma menina leprosa, curando-a, em Vila Flor (Sª da Assunção), a um
moço “pouco atilado” e depois a seu pai pedindo uma capela em S. Martinho de
Balugães (Sª Aparecida). Umas vezes sobre um penedo, outras sobre um
castanheiro, um loureiro, uma roseira brava, uma pereira, ou montada num burro
(em Rebordelo). A todos pede uma capela. Em Mogadouro pediu mais: que mudassem
o nome de Sª das Dores para a atual Sª do Caminho.
São
aparições mescladas em relatos lendários com um fundo comum, incluindo o da
natureza dos “videntes”: geralmente crianças pobres, pastorinhos, de escassa
instrução. A circunstância de se tratar de pessoas simples, cultural e socialmente,
inibe à partida qualquer presunção de haverem planeado uma ação estratégica. Por
isso, quanto mais a lenda acentue a sua humildade mais convincente resulta o
seu testemunho. Acresce que, tratando-se de figuras do povo, é grande a
probabilidade de a “notícia” fluir rapidamente no seu seio. Entretanto, há um
olhar resistente, reprovador, das camadas mais elevadas da sociedade,
gerando-se um confronto de classes que faz emergir as condições propícias à
implementação da ideia de uma justiça cristã sempre favorável aos mais humildes,
tal como a apregoa a Igreja. E ao mesmo tempo reforça-se no imaginário coletivo
a dimensão mítica das narrações.
AP
in JORNAL DE NOTÍCIAS, 10-4-2017)