Muitos dos contos dos irmãos Grimm,
publicados há 200 anos, na Alemanha, e que impulsionaram a literatura infantil
em todo o mundo, eram já antes conhecidos em Portugal através de versões que
corriam na tradição oral do povo iletrado. Duas razões objectivas são de
mencionar: 1 – O escritor e
etnógrafo Trindade Coelho, que nasceu em Trás-os-Montes, em 1861, demonstrou
que já os conhecia nas suas versões primitivas. Essa a razão por que, nos finais
do séc. XIX, ao tomar contacto com os contos dos Grimm em francês, tentou
naturalizá-los portugueses para “restituí-los à sua forma popular e primitiva”,
como deixou escrito numa carta a um dos seus editores. Logicamente, tendo vivido a sua
infância em terras transmontanas, ouvira tais versões junto de pessoas idosas e
iletradas, que, no mínimo, viveram na transição para o séc. XIX, tendo por isso
herdado do século anterior essa memória, que então corria exclusivamente na
tradição oral. 2 – Correm ainda hoje muitas versões e variantes de contos dos
Grimm nos meios rurais transmontanos, transmitidas por idosos iletrados que
afirmam terem-nas ouvido aos seus avós igualmente iletrados. Por exemplo, “Os
Músicos de Bremen” dos irmãos Grimm corre na versão “Os cinco amigos e os
ladrões”; o conto “O alfaiate valente” aparece na versão “O gigante e
o anão”; “O lobo e o homem” corre na versão “O leão e o bicho homem”, “O
pequeno grão de milho” conta-se como o ”O menino grão-de-bico”; o “Príncipe
sapo” corre como “A princesa e o sapo”; e “O gato das botas” corre como “O gato
do conde de Aragão”.
Não obsta tal acepção ao reconhecimento
de que a tradição oral é também um espaço de ressignificação da cultura
escrita, assim como esta é um espaço de ressignificação da cultura oral. Ou
seja, no âmbito das relações entre a esfera textual e a popular (oral), há
sempre um deslocamento recíproco de reconstrução de significações, um fenómeno
de “mão dupla”, que corresponde ao conceito de circularidade presente nos
processos de interacção entre a cultura do povo e a das elites. Daí a
importância de se conhecer sempre, o mais possível, a longura temporal dos
primeiros registos dos contos, o que, levando em conta o testemunho de Trindade
Coelho, parece acontecer com as versões portuguesas que circularam num universo
iletrado que nos pode levar, no mínimo, até finais do Séc. XVIII.
Em boa verdade, as versões dos contos de
Grimm que, ainda hoje, à margem dos textos escritos, os mais idosos e iletrados
da região transmontana reproduzem oralmente como herança das gerações
anteriores, apresentam-se claramente afectadas pelos processos de contaminação
que a circulação oral sempre implica, mas com a particularidade de conterem
“motivos marcantes” que retratam as vivências e inquietações dos meios rurais. Assim,
conforme a intensidade das narrações e o seu contexto idiossincrático, vão-se
alternando alguns dos estereótipos do maravilhoso (lobos, bruxas, fadas, ogres,
gigantes, olharapos…), e também os motivos agro laborais, religiosos, sócio
educativos, lúdicos e humorísticos.
Por tudo isto, os contos populares,
valiosos como foram para as gerações do passado, não deixarão de continuar a
sê-lo para as gerações do futuro.
Alexandre Parafita
in Diário de Trás-os-Montes